Ele veio até a clínica.
- Doutor, o senhor precisa me ajudar.
Se existe algum equilíbrio perfeito entre desespero e consciência, foi com esse equilíbrio que ele falou.
- Bem, qual é o problema, rapaz? - perguntei.
- São meus olhos, doutor. Eu preciso que você os arranque.
- Como é?
...
- Meus olhos, doutor. Não aguento mais viver com eles. O senhor poderia me ajudar?
Ajustei-me na cadeira da clínica. Olhei-o frente a frente. Inspirei, coçando o cavanhaque devagar.
- Não.
- Doutor, o senhor não est....
- Isto aqui é um consultório para problemas sérios, rapaz. Não tenho tempo para delírios desse tipo.
Ele abaixou a cabeça. Respirou fundo. Pausadamente, foi levantando o olhar até confrotá-lo com o meu.
- Escuta, seu filho da puta. Você deve estar achando mil merdas, me julgando, como todos julgam, mas o que te vim pedir aqui não é brincadeira. Eu tenho dinheiro que você precisar, tenho motivos.
Senti o sangue subir. Ele me afrontava. Considerei expulsá-lo da clínica naquele momento. Mas ele poderia estar armado. Lembrei de uma conversa de bar, que um amigo disse uma vez: "vai ver, as pessoas enlouquecem só porque ninguém as escuta"
- Porque diabos você quer que arranquem seu olhos?
Ele pareceu ter entendido minha mudança de ânimo. Mudou o dele também, refletiu um pouco, fazendo aquela mesma cara que um palestrante questionado por algo que nunca tinha pensando antes faz.
- Eles afrontam a sociedade. Eu gosto de olhar pra pessoas, doutor. Nasci assim, vou morrer assim. Mas as pessoas parecem que não gostam que eu olhe para elas. Elas ficam desconfortáveis, e não se importam nem um pouco em demonstrar isso.
O olhar fala, doutor. As pessoas são lindas, e eu olho para elas. É o meu jeito de dizer: você é linda. Mas não é isso que elas entendem. Estão acostumadas a ter medo de quem as olha, como se o olhar aprisionasse. Como se, apenas olhando, estivesse eu estuprando, violentando, roubando e matando elas.
O pior dos crimes, pois culmina em todos eles juntos, passa a ser o olhar. As pessoas nem olham de volta, evitando cometê-los. Aliás, nem olham pra mais nada. Foda-se se tem alguém sendo roubado, passando fome ou chorando: elas não olham.
Invejo elas, doutor. Queria ter esse auto-controle e não olhar pra mais nada.
Mas não tenho. Então, arranque meus olhos.
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
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