quinta-feira, 26 de maio de 2016

Arqueólogas

Ela espanava a terra seca. Uma gota de suor escorreu da testa dela, desconcentrando-a um pouco. Ela descalçou suas luvas e secou a gota em um gesto rápido, com as costas da mão, e lançou um longo suspiro e olhou pra cima. Ceú azulzinho, com sol a pino. Ninguém poderia acreditar, se ela contasse, que havia horas em que a arqueologia cansava tanto quanto uma maratona. Ainda mais em dias assim.

Ouviu chamarem seu nome. Do outro lado, a sua xará de nome, envolta pela terra vermelha e barro seco, levantava a voz ansiosa. "Érika, vem cá! Preciso que você de uma olhada nisso!".

Lá foi a arqueóloga, abandonando sua tarefa de espanar um dos pontos de pesquisa, para atender sua xará. Desceu o desnível que estava e encontrou-a também concentrada, sentada com as pernas cruzadas, quase enfurnada na boca de um buraco horizontal no barranco acostado. O buraco era menor que meia pessoa em largura e altura e profundidade, e provavelmente fora cavado pela própria xará.

- Consegue ver daí? - a xará perguntou, sem levantar e nem olhá-la.
- Ver exatamente o quê?
- A placa. Acho que é gesso. Consegue ver?

A arqueóloga cerrou os olhos, focando no que havia dentro do buraco. Identificou o que sua xará se referia: era mesmo uma placa, ou pelo menos o relevo de uma, no qual algumas linhas incrustadas indicavam o início de um desenho. Érica (a xará), espanou mais umas vezes a placa.

O desenho revelou-se: um círculo de pessoas, com braços unidos. De mãos dadas, como em uma ciranda. "Nossa", suspirou a xará e a olhou:

- Nossa, isso me lembra muito uma lenda que eu ouvia quando menor.
- Que lenda? - perguntou a arqueóloga, sentando ao lado da xará.
- Ora, Doutora, sabe da paz que os povos Barothak firmaram nestas terras durante quase meio milênio?
- Sim. E?
- Então... o que aprendemos na faculdade é que uma diversidade de fatores combinados levaram os povos a guerrear após meio milênio "da grande paz". Escassez de recursos naturais, decisões políticas ambiciosas e ruins, essas coisas.
- Sim, sim. Isso eu sei. Mas e daí? - antecipou a arqueóloga, impaciente.
- Então... Os antigos contam, e minha vó em especial sempre disse isso, que a verdadeira causa do fim da paz entre os povos Barothak foi a mudança em um costume tradicional deles.

Érika encurvou as sobrancelhas, com uma expressão facial de descrédito e dúvida. Estava prestes a interromper com novas perguntas sua xará, quando esta continuou:

- Vovó contava que os Barothak acreditavam que nenhuma decisão poderia ser tomada por mais de uma pessoa se essas pessoas não estivessem de mãos dadas. Era um costume obrigatório, quando o assunto fosse sério, que fosse discutido e decidido com todos os envolvidos de mãos dadas.

- Mãos dadas? - perguntou a arqueóloga, mudando a feição do rosto e o tom de voz. Sua expressão deixou de ter desconfiança e tornou-se amena.
- É. Mãos dadas. Assim, ó.  - a xará disse isso enquanto pegava nas mãos da outra e as segurava.

"Para esses povos, dar as mãos significava que uma pessoa não poderia usar da força contra o próximo enquanto decidiam. Vovó explicava que era porque não tem como você atacar alguém quando está com as duas mãos entrelaçadas com essa pessoa."

A xará respirou fundo e continuou:

- O costume perdurou durante muitos séculos, mas os mais novos começaram a achar esse ritual de debater com mãos dadas antiquado. Achavam que não fazia a mínima diferença isso no fluxo das ideias, que era só uma crendice boba. Aí foram abolindo o ritual, até que os povos começaram a se tornar mais frios nas negociações com o passar do tempo. E começaram as guerras.

A arqueóloga fez um movimento de sim tímido com a cabeça, mas apenas comentou "bobagem isso". Afastou as mãos da xará e disse:

- Bela história. Mas não tem nenhum valor histórico. Vou voltar ao trabalho.

A arqueóloga levantou-se e foi. A xará olhou para ela indo, depois para o seu achado. Juntou suas mãos e lembrou do restante da história.

Afinal, depois de abolido este costume de dar as mãos com o próximo, é que nasceu o hábito de juntar as próprias mãos para orar, torcer e esperar.

Juntar as próprias mãos, em um gesto de esperança de que as mãos dadas voltarão.

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