quinta-feira, 19 de maio de 2016

Canções

Ganhei uma fita rodeada de fitas. Uma fita cassete, com quatorze canções registradas, todas gravadas dia a dia da rádio. A fita, branca e amarelo claro, ornamentada com fitas verdes, trazia um recado em letras garrafais: "Parabéns Fefe!" e um coraçãozinho desenhado em caneta hidrocor.

Trouxe a fita pra perto de mim. Sabia que ali tinha um pedaço da minha história, mas contada por outras pessoas. Movi-me para perto do som, coloquei a fita.

Play. Ouvi. A primeira canção era sobre lar. O lugar de onde sou.

O primeiro som veio de um violão, sozinho. Nunca havia ouvido a canção. A melodia, abraço de vento, tremendamente assobiável, parecia muito inspirada nas cidades de interior. Onde há varandas verdes, montanhas, cercas brancas. Dava pra ouvir, na gravação, passarinhos cantando, enquanto o vocal, um barítono manso, contava em outro idioma uma história não muito a ver comigo.

A segunda canção começou. Era sobre passado.

Um lá menor da guitarra-violão de Jimmy Page inicia ela. Essa eu conheço. O clássico dos clássicos, uma música que escutei minha adolescência inteira, voltava-se para mim. Não consegui conter o sorriso e o pensamento de que a arte, afinal, é passado sempre reinventado. Sempre resignificado.

A terceira canção seguiu, então. Era sobre coragem.

O suspiro forte encorajador é a marca registrada da terceira canção. Também conheço essa, aliás, apresentei-a para ela. É uma que exige coragem para cantar. Tanto, mas tanto, que o contexto em que ela aparece (um anime chamado "Beck") é sobre um garoto introvertido que toma coragem de ser músico. De ser ele mesmo.

O riff da próxima é sensacional. Ainda mais na versão que ela escolheu, tocada no violão, onde notas em staccato fazem ataques rápidos, como passos curtos mas incisivos. "And I wonder, when I sing along with you..." compôs Dave Grohl, e ouvi ela cantando essa frase, ainda quando nos conhecíamos, por cima da voz do Dave. Ouvi ela cantando e olhando para mim. Cantando para mim.

Apesar disso, a quarta canção era sobre esperar, desde sempre. Sobre refletir.

Já a quinta canção é sobre o estar. Sobre estado de espírito.

É mais calma. Um riff marcante, decrescente, vai construindo a história de um encontro em um café. A música reflete muito dias cinzas, mas que não são tristes. Pelo contrário, dias cinzas são confortáveis e graciosos, acompanhados de café e companhia.

Próxima canção.

A balada medieval da sexta música também me é conhecida. O nome dela é Scarborough Fair. A calma inicial dela vai misturando-se com a complexa mistura de instrumentos no desenvolver da música. A história deixa de ser sobre paz, sobre uma feira onde há amor e tranquilidade, para construir a narrativa de uma invasão militar. A sexta canção, era então, sobre mudança. Sobre evolução.

Pausei um pouco a fita para refletir. Esse era o primeiro bloco de canções, das coisas que eu mostrava para ela. Um pouco do meu lar, um pouco do que conto e carrego, um pouco das maneiras que ajo (ora corajoso, ora esperando demais), e um pouco mudança.

A sétima canção, marco da metade do disco, tem um ar de areia e calor. Com elementos que me lembram Jack Johnson, a música compassada fala sobre surpresa. Com a frase "I wasn't expecting that", o cantor descreve a evolução do seu relacionamento, de como algo simples tornou-se o centro da vida dele, até o final derradeiro. Uma música feliz demais que torna-se triste, de uma maneira muito inteligente.

Essa nova etapa de músicas, iniciada pela sétima canção, já não são tão de mim para ela, mas dela para mim. A oitava segue a mesma lógica.

A oitava canção parece ser sobre amor. As vozes, em dueto, sobrepõem o violão, que é tocado com abafado, aveludado. A canção pede amor, fala de amor, sofre amor. "Love can heal, can amend a soul".

A nona é um clássico. Música de cinema, também com dueto, com violão cristalino. Música para cantar olhando nos olhos do seu dueto. O crescendo final da música é puro sentimento, apesar do apelo pop.

As próximas canções formam um novo bloco. Há uma mudança essencial: o idioma agora é português. É ela me dizendo para esquecer um pouco o aspecto instrumental, e ouvir o que cada canção tem para dizer.

A décima e décima primeira canções são do Vanjor, um amigo dela, um excelente cantor e compositor. As duas são sobre amor, usando o olhar como fonte primordial. Mas a décima é o olhar de celebração, cheio de esperança, de quem encontrou amor, enquanto a décima primeira é do olhar de admiração, de respeito, de quem está em um relacionamento longo.

A décima segunda canção é... é só a minha canção favorita de todos os tempos.

Tempo Perdido, da Legião Urbana. Mas na voz do Tiago Iorc. Dessa vez, é ela reinterpretando meu passado. É ela participando de mim. A canção passa por todos os sentimentos que cada uma das onze músicas anteriores revelou. Estamos distantes de tudo, perto do fim. A fita começa a ficar escassa.

A décima terceira canção é bem agitada. Última respirada antes do final, última animada. Fala sobre uma particularidade nossa de maneira divertida: "Se fosse mudar algo em você, só mudava o endereço". Pode crer, pode crer, pensei rindo. Música feliz.

Em fim, a última canção. É um hino religioso. De repente, ouço a voz dela. "Precioso", ela diz rindo. Desligo o som e olho para trás esperando vê-la, mas ela não está no meu quarto. Pego a fita, emocionado.

Ela está na fita.

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