Eles estão em uma cabine de rádio. Pausa comercial. Ela acaba e logo o radialista assume o posto.
"Estamos aqui com o candidato X, para seguir nossa série de entrevistas com os prefeitáveis de nossa cidade. Caro sr. X, boa tarde!"
- Boa tarde, Wilson. É um prazer estar aqui para e
ste bate-papo contigo e com nossos ouvintes.
- Sr. X, como o senhor deve imaginar, nossa entrevista será composta de dois bloc
os: no primeiro momento, te farei uma série de perguntas básicas, para que o senhor possa expor suas propostas. No segundo bloco, será aberta a oportunidade dos ouvintes realizarem as perguntas, no qual o senhor contará com até
três minutos para responder cada pergunta. Está preparado?
- Sim, sim, Wilson. Manda ver.
O radialista, Wilson, pigarreia. Ajeita seu papel-roteiro e começa:
- Sr. X, a primeira pergunta são sobre as prioridades.
Em quais setores, áreas, etc. o senhor pretende dar mais atenção em seu governo, caso eleito?
- Bem, Wilson, antes de ir ao ponto e responder sua pergunta,
queria só atenção pra uma coisa, um conceito que as pessoas muitas vezes nem se dão conta. Quando falamos em escolher prioridades, estamos também falando do reverso da medalha - ou seja, das áreas que não serão dadas atenção igual, e principalmente, que terão verbas igual ou menor do que nos governos passados.
O Sr. X dá uma pausa rápida. Bebe um gole de água. Seus olhos brilham, como se ele estivesse a muito tempo preparado para o que irá dizer em seguida:
- Queria que meus ouvintes mantivessem essa ideia de q
ue o vital não é a prioridade, mas sim as áreas que não serão prioritárias. Ou seja, aquilo que se esconde no discurso. Eu vou expor as fraquezas da minha proposta, em prol da transparência e da sinceridade. Farei para me distanciar dos discursos manipuladores, pedindo encarecidamente aos ouvintes: estejam sempre atentos não ao que é dito, mas aquilo que o discurso esconde.
- Ui, indireta para algum prefeitável, Sr. X? - Wilson interrompendo com um gracejo.
- Nem terminei
a primeira resposta e já estamos na segunda pergunta, Wilson? - Sr. X responde, soltando risadas ritmadas e curtas.
- É que a alfinetada não poderia passar despercebida, Sr. X. Nem pra mim, nem para os ouvintes. Mas siga sua explanação. Lembrando-lhe que nosso primeiro bloco tem um limite de tempo.
- Tudo bem, Wilson. Prosseguindo ao ponto e finalmente respondendo a pergunta inicial... - dessa vez, Sr. X que faz uma pausa para pigarrear e limpar a garganta.
Respira profundamente e continua:
- Minha prioridade será a estrutura interna da Prefeitura. Será reorganizá-la, de modo à deixar eficiente. Em palavras mais humildes, cuidarei primeiro de dar jeito na
casa para receber o povo.
- Uma prioridade diferente, Sr. X. Poderia nos explicar melhor do que se trata sua ideia de "dar jeito na casa"? - interveio Wilson, ressaltando com leve sarcasmo o "dar jeito na casa", talvez ainda ressentido com a última cortada que havia tomado.
- Pois bem. Durante o meu primeiro ano de mandato, não pretendo fazer grandes obras, nem grandes festivais, nem mudanças drásticas na saúde ou na educação. O que eu vejo de mais emergencial é a forma com que a Prefeitura recebe e resolve suas demandas. Sua burocracia interna, atualmente, é muito lenta. Processos simples levam meses, alguns levam anos, para tramitar e chegar a uma resolução. Pergunte em qualquer funcionário público e você verá que a maior frustação da maioria deles é que coisas simples, como aquisições de material de insumo, levam um tempo a
bsurdo para ser resolvido.
- Entendo, Sr. X. Mas o senhor não acha que educação e saúde não são demandas mais emergenciais? - perguntou Wilson, reforçando as palavras "saúde", "educação" e "emergenciais", em tom grave e sério.
O Sr. X imaginava que essa pergunta viria. Mas não imaginou foi que o tom de voz do entrevistador ao perguntá-lo seria tão intimidador. Sr. X se ajeitou na cadeira, puxou o
ar com força para disfarçar o nervosismo, e continuou:
- Wilson, eu entendo perfeitamente que o povo precise de educação e saúde. Mas, só posso oferecer a eles educação e saúde se o meio pelo qual se dá os processos funcione adequadamente. Eu entendo que como não há forma mágica de arrumar mais verbas para estas áreas, o que posso fazer é que o uso destas verbas seja eficiente. Para tanto, tenho que limpar as "engrenagens" da Prefeitura. E, mais importante ainda, torna-las transparentes.
"Quer um exemplo? Suponhamos que esteja faltando um tipo de remédio específico nas farmácias populares. A demanda chega a Secretaria de Saúde, que inicia um processo para a aquisição de tal remédio. Contudo, a tramitação encontra gargalos de demora, porque a Comissão de Licitação está abarrotada e não consegue dar fluxo a todos os processos que chegam, e quando consegue analisar o pedido, já se passaram semanas. Aí suponha que alguma especificação do remédio esteja faltando. O que acontece? Ele é reenviado para a Secretaria de Saúde, para fazer as mudanças. A Secretaria de Saúde refaz as mudanças, reenvia o processo, mais algumas semanas já se passaram. Aí chega na Procuradoria Jurídica e encontramos um defeito jurídico. Mais algumas semanas passam também, isto por que a Procuradoria Jurídica também recebe diversos processos e está abarrotada para dar prosseguimento rápido. Já estamos neste momento falando de meses sem o remédio que a população precisa..."
- Sr. X, um segundinho. Temos apenas mais dois minutos antes do próximo bloco, peço para que seja breve. - interrompeu Wilson.
- Enfim, Wilson, e ouvintes, ao ver que a tramitação interna torna ineficiente os gastos públicos, o que pretendo é focar neste ponto. Identificar os gargalos da tramitação, e investir neles para que funcionem melhor. Eu sei que isso levará tempo, por isso meu primeiro ano de mandato será esta a prioridade. Claro, também pretendo investir em tecnologia interna da Prefeitura, para que os processos tramitem virtualmente. É muito mais fácil para a população acompanhar processos virtualmente do que quando são processos físicos.
- É isso Sr. X, encerramos aqui nossa primeira parte da entrevista. Voltamos já, caros ouvintes, com as perguntas que vocês podem fazer pelo nosso telefone para o prefeitável.
- x - x - x -x -x -x -x -x -x - x -
- Gostaria de lembrá-los, não ignorem as coisas que o discurso esconde.
- Pra fazer algo, tem que tirar de algum lugar. Mas de onde?
- Da fé que não é, da fé que não é, insonso
- Será que é do pensar e dos planos?
E se nossa noção de povo for um mito? -
- E se o povo não existir?
E se o que existir na verdade são apenas indivíduos -
- Que não são unidos, nem coletivos
Apenas obedecem pra evitar lutar -
- x - x - x -x -x -x -x -x -x - x -
- Estamos de volta, caros ouvintes, com o Sr. X, candidato à prefeitura nesta eleição. Como combinado, Sr. X, neste bloco, iremos apresentar perguntas dos ouvintes que ligarem para nossa rádio para o senhor. Está pronto?
- Sim, Wilson.
- Excelente. Parece que já temos uma primeira pergunta. O autor da pergunta, jovem cidadão que pediu para não se identificar, nos enviou a seguinte mensagem: "Prefeitável, caso eleito, qual será o seu primeiro ato administrativo?"
- Publicar um decreto, caro ouvinte. - respondeu Sr. X, e aguardou.
E aguardou ao ponto de passar mais de meio minuto.
- Essa é sua resposta completa, Sr. X? Não teria algo a adicionar sobre o conteúdo deste decreto? Imagino que os ouvintes estejam curiosos...
- Por coincidência, eu trouxe o conteúdo que pretendo publicar do Decreto. Estenderia meu tempo para que eu pudesse lê-lo, Wilson?
- É muito grande, Sr. X?
- São três artigos. Sendo que o último é aquele de práxis, o "este decreto entra em vigor entra na data de sua publicação, etc."
- Leia-o para nós então, Sr. X.
- Com prazer.
"DECRETO nº xxxx
O Prefeito Municipal, no uso de suas atribuições legais, DECRETA:
Art. 1º - É vedado, em toda e quaisquer comunicação interna do Poder Executivo Municipal, incluído seus órgãos e autarquias, o uso de pronomes de tratamento no tocante aos cargos de Secretários, do Prefeito Municipal e seu vice, e demais autoridades internas.
Parágrafo único - Para fins deste artigo, considera-se como pronome de tratamento toda partícula que signifique tratamento diferenciado, tais como Vossa Excelência, Digníssimo Doutor, Ilustríssimo Senhor, entre outras.
Art. 2º - O não cumprimento desta norma acarretará em não recebimento da respectiva comunicação, quando ocorrida ocasionalmente, até a suspensão do funcionário emitente da comunicação, caso ocorra reiteradamente, respeitado o direito à ampla defesa e contraditório."
- Bem, é isso. Mais o terceiro artigo, aquele de práxis. - concluiu o Sr. X.
- Prefeitável, não resisto e terei que perguntar: mas qual diferença fará este decreto? Se entendi direito, o senhor pretende proibir que o chamem de Vossa Excelência?
- Exatamente, Wilson.
- Mas porquê?
Sr. X irá sorrir ao ouvir essa pergunta. Irá sorrir porque o prefeito que eu queria (s)ter sorriria. E irá responder uma coisa que todos já deveriam saber: a desigualdade começa nas palavras que adotamos.